Quando o assunto é vício em apostas esportivas, a maioria das pessoas pensa apenas nos casos extremos — dívidas enormes, perda de relacionamentos ou venda de bens. Mas, como explicou o psicólogo Rafael Ávila, especialista em ludopatia e jogo responsável, o problema começa muito antes disso.
Em entrevista ao Buteco do Clubão, Rafael detalhou como funciona o processo de negação, o papel dos vieses cognitivos no comportamento do apostador e como é o tratamento para quem já perdeu o controle. O resultado é um guia essencial para identificar e enfrentar o problema antes que ele se torne devastador.
A negação: por que tantas pessoas demoram para admitir o problema
A primeira barreira para tratar o vício em apostas é a negação. A maioria dos pacientes não chega ao psicólogo dizendo “sou viciado”. Eles minimizam o problema, justificam perdas, racionalizam comportamentos e repetem frases como:
- “Eu sei o que estou fazendo.”
- “Eu não sou viciado, só estou em uma fase ruim.”
- “Eu sou lucrativo, só não saco antes de perder.”
Segundo Rafael:
“Essas pessoas têm vieses cognitivos — pensamentos errôneos — que motivam elas a continuar jogando. A minha função é quebrar esses vieses e trazer a pessoa para a realidade.”
É esse processo de racionalização que inicia o tratamento.
Como o psicólogo quebra os ‘vieses cognitivos’ do viciado
Rafael explica que o cérebro do dependente cria justificativas para continuar apostando. Uma das mais comuns é a ilusão de que uma grande vitória está prestes a chegar.
“Muita gente acredita que quanto mais perde, mais perto está de ganhar. E aí eu pergunto: por que você acha que o jogo vai trazer a solução de um problema que foi criado pelo próprio jogo?”
O primeiro passo é ajudar o paciente a enxergar o passado — e não uma fantasia de futuro.
Em vez de pensar “vou recuperar”, o psicólogo estimula a reflexão:
- O que o jogo trouxe até agora?
- Quanto você já perdeu perseguindo o prejuízo?
- O que aconteceria se você perdesse o valor que quer apostar agora?
Rafael conta:
“A gente faz a pessoa olhar para trás, não para frente. É o passado dela que mostra o que o jogo realmente faz.”
Quando o paciente começa a entender a raiz do problema
Depois de quebrar os vieses, vem a psicoeducação: explicar que muito do que o paciente sente — insônia, depressão, ansiedade — não é consequência das dívidas, mas sim sintomas diretos da dependência comportamental.
“A pessoa acha que está depressiva pelas perdas. Mas a depressão é sintoma do vício. Mesmo sem perder dinheiro, ela estaria assim.”
A partir desse ponto, o paciente começa a perceber que o jogo é a raiz do problema, e não o efeito colateral. Só então ele começa a aceitar a abstinência como caminho.
O tratamento para quem já está no fundo do poço
Quando o vício está avançado, o tratamento é mais rígido. Rafael explica que é impossível recuperar o controle sem abstinência completa, principalmente por causa da facilidade de acesso ao jogo online.
O psicólogo utiliza três pilares:
1. Controle financeiro total
É preciso impedir que o paciente tenha meios de apostar:
- limitar transferências bancárias;
- permitir que o dinheiro só vá para um “contato de segurança”;
- familiares acompanham extratos semanalmente;
- cartões de crédito e Pix ficam bloqueados para uso livre.
“Você tem 24h para o banco desbloquear limites. Isso já impede a aposta impulsiva.”
2. Bloqueio tecnológico
Usando ferramentas como o Gamban, que bloqueia o acesso a todas as casas de apostas e não pode ser desinstalado, o paciente simplesmente não consegue entrar nos sites.
3. Mudança completa de rotina
Quando o jogo sai da vida da pessoa, fica um buraco — e, se esse espaço não for preenchido, a chance de recaída é enorme.
Por isso, Rafael reconstrói a rotina do paciente:
- atividades físicas;
- reencontro com família e amigos;
- novos hobbies;
- atividades sociais;
- retomada de objetivos pessoais.
“Se você não preencher o espaço que o jogo deixa, o cérebro vai buscar o mesmo estímulo — e vai buscar no jogo.”
Abstinência: o desafio mais difícil
A abstinência não significa “não sentir vontade”.
Ela significa não ter como agir sobre a vontade.
O desejo de apostar ainda virá — e é por isso que o sistema de travas, limites e bloqueios é essencial.
Rafael explica:
“A vontade vai vir. Mas se para apostar eu tiver que mostrar meu extrato para minha esposa, talvez eu segure o impulso.”
É esse conjunto de estratégias que torna possível o início da cura.
Conclusão: enfrentar o vício é possível — mas exige coragem e estrutura
O vício em apostas é silencioso, progressivo e poderoso.
E, segundo Rafael Ávila, ninguém vence esse problema sozinho.
É preciso:
- reconhecer os sinais;
- admitir o problema;
- aceitar a abstinência;
- reconstruir a rotina;
- buscar apoio profissional e familiar.
O caminho é difícil, mas possível — e começa quando o apostador entende que o jogo não é a solução para nenhum problema. Ele é a origem deles.
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🔞 Jogue com responsabilidade
Perguntas frequentes sobre como lidar com vício em apostas
Como saber se sou um viciado em apostas esportivas?
Alguns sinais clássicos incluem perda de controle, tentar recuperar prejuízos a qualquer custo, apostar com dinheiro que não deveria, dificuldade de parar mesmo após perdas e impacto negativo na rotina, no sono ou no humor. Se você não consegue respeitar os limites que você mesmo definiu, isso já é um forte alerta.
Qual é o primeiro passo para tratar o vício em apostas?
O tratamento começa pelo reconhecimento do problema. Em seguida, adota-se uma fase de abstinência supervisionada, que envolve limitar acessos a casas de apostas, bloquear meios de depósito e reorganizar a rotina com novos hábitos. Muitas vezes é necessário apoio profissional e familiar.
Segundo o psicólogo Rafael Ávila, por que é tão difícil admitir o vício?
Rafael Ávila explica que a negação é alimentada por vieses cognitivos, como a falsa crença de que “está perto de ganhar”, “é só sacar antes de perder” ou “da próxima vez dá certo”. Esses pensamentos distorcidos mantêm o jogador preso ao ciclo, impedindo que ele enxergue a raiz do problema: o próprio jogo.
Como funciona a abstinência no tratamento, de acordo com Rafael Ávila?
Ávila afirma que a abstinência envolve duas frentes: cortar o acesso às plataformas (via apps de bloqueio, limites bancários e apoio de familiares) e reconstruir a rotina do paciente com atividades que substituam o estímulo dopaminérgico que o jogo fornecia. Sem novos estímulos, a fissura tende a voltar com intensidade.
Todo viciado em apostas precisa parar completamente de jogar?
Na maioria dos casos, sim. O comportamento compulsivo exige abstinência total, ao menos por um longo período, para reconstruir os mecanismos de controle e evitar recaídas. Somente após estabilização emocional e acompanhamento profissional é possível discutir se existe espaço para qualquer contato futuro com apostas — e para muitos, a resposta é “não”.


